
Notícias
O desenvolvimento do tela grande indígena e sua interface com o audiovisual produzido por não indígenas foi tema de debates entre cineastas que participam do 26º Festival Internacional de tela grande e Vídeo Ambiental (Fica), na Cidade de Goiás, que termina neste domingo (16).


O Fica é considerado o maior evento audiovisual com temática ambiental da América Latina.
Notícias relacionadas:
- 'expressão pode servir de alerta para questão ambiental', diz Zeca Baleiro.
- Festival de tela grande destaca o Cerrado no equilíbrio do tempo atmosférico.
"Tem duas formas de fazer tela grande nas aldeias. Uma é documentar, registrar o conhecimento [oral] que vai ficar para sempre circulando para o povo nas aldeias. O outro jeito de produzir é criar uma narrativa própria sobre a realidade, traduzir para o português para que o não indígena entenda nossa realidade, e exibir através do tela grande", afirmou em conversa com a Agência país.
Takumã já teve filmes premiados em festivais como os de Gramado e de Brasília, e em eventos internacionais de tela grande, como Presence Autochtone de Terres em Vues, em Montréal, no Canadá. Em 2017, recebeu o prêmio honorário bolsista da Queen Mary University London. E, em 2019, tornou-se o primeiro jurado indígena do Festival de tela grande Brasileiro de Brasília, um dos mais importantes do país.
No Fica 2025, o cineasta colaborou no processo de seleção de obras para mostras competitivas. Ele passou a enxergar um amadurecimento na produção audiovisual indígena, e defende a necessidade de superar as velhas narrativas de caráter etnográfico que permeou a produção cinematográfica sobre os povos tradicionais ao longo de décadas, dentro e fora do país.
"Temos que superar a narrativa etnográfica como única linguagem [sobre indígenas no tela grande], essa tem sido a minha preocupação. E explorar a fundo a linguagem cinematográfica para contar nossas próprias histórias, criar nossos personagens, fazendo, por exemplo, mais filmes de ficção", argumenta.
Integrante do júri oficial do Fica 2025, o premiado cineasta e indigenista Vincent Carelli, criador do proposta Vídeo nas Aldeias (1987), que forma cineastas indígenas desde meados dos anos 1980, percebe diferenças fundamentais na produção de tela grande entre indígenas e não indígenas.
"Esse acesso com intimidade, com a língua, com o conhecimento e convivência da tradição é outra coisa. Isso, em termos de conteúdo, de sensibilidade, tanto de quem filma quanto de quem é filmado, é um significativa diferencial", avalia.
"Eu sempre tentei fugir dessa ideia de tela grande etnográfico para refletir as questões indígenas".
Relações simétricas
Ao longo dos últimos anos, a colaboração entre indígenas e não indígenas tem sido uma constante no tela grande sobre povos tradicionais, mas esse processo ainda ocorre em meio a tensões.
"Quando você vai nas aldeias, todos eles dizem que já tiveram experiências negativas com imprensa, com pesquisadores, com televisão, e com cineastas, né. Todos os agentes. Porque aí ocorre essa falta de simetria no relacionamento", aponta Vincent Carelli. "Isso é algo que ainda acontece, mas esses jovens indígenas do tela grande estão tendo uma atitude mais contundente contra isso atualmente, se colocando como diretores, assinando as obras", acrescenta.
"Eu vejo muitos não indígenas se colocando acima dos indígenas, excluindo dos festivais mais importantes. Eu, por exemplo, participei do Festival de Gramado, em 2011. Eu ganhei lá um Kikito [premiação], mas, depois disso, nunca ouvi falar indígena participando. Então, ainda é uma coisa meio isolada, esse reconhecimento", aponta Takumã Kuikuro.
"A gente enfrenta ainda um certo preconceito para ocupar esse espaço", afirma Kléber Xukuru, cineasta e comunicador indígena, diretor da Ororubá Filmes. "Mas é bom lembrar que os povos indígenas do país são resistentes e insistentes. E o audiovisual é uma ferramenta que hoje a gente tem visto também como uma porta de luta", destaca.
Olhar indígena
No longa-metragem Minha Terra Estrangeira, essa questão aparece dentro e fora da tela. O longa, que estreou com significativa sucesso no festival É Tudo Verdade, em abril, foi o principal longa-metragem convidado do Fica este ano, e contou com três exibições em salas de tela grande da antiga capital goiana. Trata-se de uma colaboração entre o coletivo Lakapoy, formado por indígenas, Louise Botkay, que foi formada pelo proposta Vídeo nas Aldeias, e João Moreira Salles.
O longa-metragem acompanha o cacique Almir Suruí, líder indígena concorrente a legislador federal por Rondônia, e sua filha, a Txai Suruí, jovem ativista ambiental, durante 40 dias que antecederam as eleições de 2022. A trajetória de Txai no longa-metragem foi acompanhada por Salles. O resultado são dois olhares simultâneos, complementares e distintos, sobre as jornadas de pai e filha.
Uma cena do longa-metragem debate exatamente esse ponto, quando num diálogo entre Txai e João Moreira Salles, o diretor se questiona e a questiona sobre o olhar de um indivíduo branco (no caso, ele próprio) para a ativista indígena, focado apenas na militância por direitos territoriais. Nesse momento, ela comenta que um diretor indígena poderia ter optado por ir além de filmar a ativista em ação, mas acompanhar outras dimensões da vida dela, como sua relação com a floresta e com o amor.
Janela de exibição
Uma das novidades desta edição do Fica é a criação do Fórum Indígena e de Povos Tradicionais, com o objetivo de amplificar os saberes e conhecimentos dos povos dos territórios e fortalecer a produção audiovisual feita por indivíduos que fazem parte dessas comunidades. Além deste fórum, o festival conta, ainda, com os fóruns de tela grande e natureza, criados em edições anteriores.
Uma das mostras competitivas é exclusivamente dedicada a exibir e premiar obras de realizadores indígenas e de povos e comunidades tradicionais. "É uma janela específica para esses realizadores, sem prejuízo de que eles estejam nas outras mostras também, como sempre estiveram e continuarão estando", afirma o diretor de programação do festival, Pedro Novaes.
* A equipe de reportagem da Agência país viajou a convite da organização do 26º Fica.